A verdade sobre o DeepSeek, a IA chinesa que está ameaçando o ChatGPT

Censura? Crise? Entenda tudo o que o DeepSeek causou no mercado de IAs no final de janeiro. A nova tecnologia conseguiu despertar discussões sobre censura de conteúdos polêmicos envolvendo a China e abalar os valores de mercado de gigantes.

A recente chegada do Deepseek no mercado de inteligência artificial tem gerado burburinho tanto pela promessa de uma tecnologia eficiente em termos de custo e energia, quanto pelas discussões sobre censura a temas politicamente sensíveis — envolvendo especialmente a China. Alguns usuários dizem encontrar bloqueios ao mencionar comparações de Xi Jinping com o personagem Ursinho Pooh ou ao tentar falar publicamente sobre fatos ocorridos em 1989 no país, o famoso massacre da Praça da Paz Celestial. Embora a censura seja, por si só, um assunto urgente para a sociedade, vamos ir além do debate sobre restrições de conteúdo para explorar outro ponto crucial: a forma como o lançamento do Deepseek questiona o modelo fechado de desenvolvimento mantido por grandes empresas de IA, especialmente a OpenAI. Eu, escritor deste artigo, como especialista no assunto, acredito que a adoção de práticas open source não só é desejável, mas fundamental para a saúde de todo o ecossistema de inovação.
A OpenAI, desde o início de sua trajetória, chamou a atenção pelo nível de excelência na produção de modelos de linguagem e por sua proposta original de “popularizar” a IA em todo o mundo. Em meados de 2019, entretanto, a empresa optou por tornar o GPT-3 um modelo proprietário, rompendo com a tradição de liberar o código e os detalhes de treinamento adotada até o GPT-2. Muitos podem argumentar que tal decisão se justificava pela necessidade de proteger a propriedade intelectual, monetizar o produto e garantir competitividade no mercado. Porém, esse fechamento interrompeu um ciclo virtuoso de colaboração.
Quando uma tecnologia é disponibilizada de forma aberta, a comunidade de desenvolvedores, pesquisadores e entusiastas se engaja para aprimorá-la, corrigir falhas e expandir suas aplicações. Essa sinergia costuma acelerar a evolução de qualquer projeto. Ao decidir fechar seu código, a OpenAI se colocou em uma posição de isolamento, criando o que podemos chamar de “pseudo monopólio” — a ideia de que somente ela possuía a tecnologia de ponta para criação de grandes modelos de linguagem. Esse posicionamento restritivo, embora tenha viabilizado acordos bilionários e alianças estratégicas, também gerou um inchaço no mercado e enfraqueceu a dinâmica de inovação.
O mundo tecnológico moderno está permeado por soluções de código aberto. Da infraestrutura de roteadores de internet aos sistemas de contêineres (como Docker e Kubernetes), passando por servidores web (como o Apache) e até mesmo sistemas operacionais de smartphones, o open source tem sido o pilar fundamental sobre a qual a indústria se desenvolve. Tendo acompanhado esse movimento de perto, posso afirmar que a abertura de código não só reduz custos de desenvolvimento, ao evitar a reinvenção da roda, como também estabelece um padrão de mercado favorável à interoperabilidade.
Em outras palavras, quando um software é distribuído sob licenças abertas (como GPL, Apache ou MIT), qualquer desenvolvedor ou empresa tem o direito de estudar, modificar e redistribuir a tecnologia. Isso cria um ciclo de retroalimentação extremamente benéfico: um ecossistema de entusiastas, pesquisadores e empresas que colaboram e competem ao mesmo tempo, mas em um nível de base tecnológica compartilhada. Essa colaboração concorrente impulsiona a criatividade, acelera a descoberta de soluções e, ao fim, beneficia até mesmo as gigantes da tecnologia.
Para uma área tão complexa e em constante evolução como a Inteligência Artificial, a filosofia open source oferece ainda mais vantagens. Modelos de linguagem, algoritmos de deep learning e bibliotecas de processamento de dados podem se desenvolver exponencialmente quando uma ampla comunidade se une para suprir demandas específicas. Imagine poder adaptar um modelo de IA aberto para, por exemplo, um idioma minoritário, uma aplicação médica especializada ou um problema de otimização de rotas logísticas. Tudo isso se torna mais rápido e barato quando todos podem colaborar sem as barreiras impostas por sistemas proprietários.
Ao fechar o GPT-3, a OpenAI criou um efeito de escassez artificial, valorizando seu produto e atraindo parcerias de peso — mas também acabou por perder uma fonte inestimável de inovação colaborativa. Em vez de contar com milhares de desenvolvedores ao redor do mundo trabalhando para corrigir falhas e aprimorar o modelo, a empresa se isolou em uma infraestrutura exclusiva, pouco transparente para a comunidade externa. Como resultado, perdeu velocidade em algumas frentes, especialmente na resolução de nuances e na adaptação a diferentes domínios de conhecimento.
A consequência imediata desse isolamento é uma limitação na adoção em massa dos modelos proprietários. Os altos custos de licenciamento e a falta de flexibilidade técnica afastam pequenas e médias empresas, universidades e pesquisadores independentes, que poderiam impulsionar a adoção e a evolução do modelo. Acaba-se criando, assim, um ciclo restrito de grandes players que podem pagar para ter acesso ao GPT-3 ou GPT-4 — o que, por um tempo, incrementa os lucros da OpenAI, mas não necessariamente expande o potencial real de aplicação dessa tecnologia.
Foi nesse contexto que o mercado começou a inflacionar as ações de empresas como a OpenAI, Nvidia e outras gigantes do setor. Havia uma percepção de “tecnologia milagrosa” controlada por poucos, o que estimulou uma bolha especulativa. Assim que o Deepseek surgiu com propostas e demonstrações convincentes, expondo a possibilidade de uma IA mais eficiente em consumo de energia e em um formato aberto, os investidores reagiram rapidamente, desencadeando quedas significativas no valor de mercado dos gigantes de IA.
Apesar das críticas sobre censura a temas sensíveis envolvendo a China, o Deepseek apresenta uma característica fundamental: o código aberto. Essa postura de transparência representa um marco para o setor e fortalece a crença de que a comunidade de IA deve se alinhar cada vez mais aos princípios do open source. Mesmo que, no site oficial, o Deepseek estabeleça bloqueios para determinados assuntos, nada impede que, em instalações locais ou versões customizadas, essas barreiras sejam removidas ou ajustadas para atender às necessidades e preferências de cada usuário.
Esse tipo de liberdade de configuração é justamente o que faz o open source se sobressair: coloca o poder de decisão nas mãos do usuário final. Empresas que pretendem adaptar a tecnologia a contextos específicos — como análise de dados em um setor verticalizado, tradução em tempo real de dialetos regionais ou mesmo aplicações em áreas sensíveis como saúde e segurança — podem fazer ajustes no modelo sem depender completamente da agenda de uma corporação. Nesse sentido, o Deepseek representa uma guinada: prova que é possível conciliar alta performance, menor consumo energético e abertura de código, sem sacrificar a viabilidade comercial.
As reações do mercado — com quedas de 17% nas ações da Nvidia e 12% na valorização da OpenAI logo após o anúncio do Deepseek — mostram o quanto o setor de IA estava fragilizado por um excesso de confiança em modelos fechados e soluções únicas. Tais oscilações expõem um receio de que o “valor” atribuído às empresas líderes de IA estivesse inflado por uma escassez artificial de tecnologia, alimentada por especulações e propaganda. Quando surge uma alternativa concreta, a bolha se retrai.
De um lado, há aqueles que acreditam que o Deepseek seja apenas mais uma onda passageira, que ainda precisa comprovar sua robustez e escalabilidade em cenários reais. De outro, há especialistas e entusiastas do open source, como eu, autor deste artigo, que veem nesse movimento uma evidência de que não devemos centralizar tanto poder em plataformas proprietárias. À medida que a base de usuários do Deepseek cresce, e que grupos independentes passam a realizar melhorias no modelo, é provável que vejamos um salto nas aplicações práticas, além de inovações, surgindo de lugares inesperados.
Trabalhando há anos com o mundo open source, sendo usuário de Linux há 16 anos, e membro ativo da comunidade, posso afirmar que a transparência e a colaboração fornecem uma vantagem competitiva que dificilmente pode ser replicada em ambientes fechados. Na maioria dos setores-chave de tecnologia — como servidores de internet, plataformas de virtualização, sistemas de contêineres e até projetos de hardware aberto — o modelo colaborativo provou sua eficiência. A razão por trás disso é simples: quando a inovação é aberta, o fluxo de contribuições não fica restrito a uma única empresa, e o ecossistema cresce de forma orgânica, gerando um padrão de mercado que beneficia a todos.
No campo da IA, em que o conhecimento técnico é complexo e o investimento em hardware é altíssimo, a abertura de modelos, bibliotecas e ferramentas permite que as contribuições sejam mais rápidas, direcionadas e, muitas vezes, surpreendentes. Iniciativas de pesquisadores independentes, universidades e empresas de pequeno porte podem levar a descobertas que passariam despercebidas em ambientes corporativos. Além disso, a natureza distribuída do desenvolvimento open source traz uma resiliência muito maior contra falhas e vulnerabilidades.
Para mim, a principal lição é clara: o open source impulsiona a inovação de forma coletiva, sustentável e ágil. Ao isolar-se no mercado com o GPT-3 proprietário, a OpenAI pode ter conquistado valor de mercado momentâneo, mas perdeu a oportunidade de liderar um ecossistema global de desenvolvedores e empreendedores. Agora, com a chegada de concorrentes como o Deepseek, fica mais evidente que o caminho do fechamento é um tiro no pé: cria-se um monopólio frágil, inflado por promessas e retóricas de inovação, mas que pode ser desafiado assim que surgir uma solução aberta competente.
Se o Deepseek de fato cumprirá todas as promessas ainda é incerto, mas o simples fato de ele retomar a filosofia do código aberto já é um sinal de esperança. As grandes companhias de IA devem repensar suas estratégias, buscando maneiras de equilibrar o retorno comercial e a colaboração da comunidade. Para nós, especialistas, desenvolvedores e usuários, fica a lição de que a busca pela inovação não está apenas em ter o modelo mais “poderoso” ou mais “exclusivo” — e sim em construir soluções inclusivas, sustentáveis e compartilhadas, capazes de impulsionar todo o setor de forma verdadeiramente aberta e livre.

Referências:

https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2025/01/28/momento-sputnik-por-que-a-ia-chinesa-deepseek-e-apontada-como-ameaca-ao-protagonismo-dos-eua-no-setor.ghtml
https://istoedinheiro.com.br/ceo-da-openai-diz-que-tecnologia-da-deepseek-e-impressionante-e-promete-lancamentos/