Esqueceram de avisar a Trump que o "destino manifesto" expirou há mais de um século, o mercantilhismo é teoria furada e que vivemos no século 21.
Declarações de Donald Trump têm gerado certo alvoroço, não apenas nas discussões internas dos Estados Unidos, mas também nas relações diplomáticas internacionais. O que está em jogo não é só o futuro econômico dos EUA, mas também as estratégias de poder no cenário global. Ao lançar propostas como a ideia de transformar o Canadá num 51º estado americano e ameaçar o Panamá com tarifas específicas, Trump não está apenas falando por falar: ele está jogando um jogo calculado.
"Muitos canadenses querem que o Canadá se torne o 51° estado", Trump publicou em sua rede Truth Social. "Economizariam demais em impostos e proteção militar. Acho que é uma ótima ideia. o Estado 51!!!" escreveu. Uma pesquisa realizada na semana passada pelo Instituto Leger mostrou, porém, que só 13% dos canadenses gostariam de que seu país se tornasse parte do território americano. Trump mencionou pela primeira vez o "estado 51" durante um jantar com o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, no fim de novembro. A questão, porém, é que essa postura não só gerou controvérsia, mas também despertou uma reflexão importante: o imperialismo americano está de volta?
A proposta de unir Estados Unidos e Canadá sob uma única nação, não é de agora. Depois da revolução americana e da independência dos Estados Unidos, diversos segmentos da sociedade consideravam natural um processo de unificação com as colônias britânicas que atualmente formam o Canadá. Durante os primeiros anos dos Estados Unidos, diversos políticos americanos defendiam a invasão e anexação do Canadá, inclusive tendo aprovado previamente a incorporação da Província de Quebec aos Estados Unidos através dos Artigos da Confederação em 1777. Era questão de tempo para que todas as colonias britanicas se juntassem a união e terminassem de ocupar toda a américa do norte.
Durante a guerra de independência, os americanos invadiram o Vale do Rio St. Lawrence , onde os britânicos repeliram o esforço. Os americanos também lutaram contra os britânicos e seus aliados indígenas em Ohio, o que era então o sudoeste de Quebec; no final da guerra, a terra ao sul dos Grandes Lagos foi cedida aos Estados Unidos. Em 1812 , as hostilidades entre EUA e Reino Unido reacenderam na “Guerra de 1812”. Os americanos invadiram novamente o Canadá. Mas a invasão foi mais tarde repelida, devido muito à dependência americana de milícias estaduais mal equipadas em vez de um exército profissional.
Durante e após a Guerra Civil Americana, políticos americanos defenderam a anexação do Canadá, justificando-se pelo apoio material da Grã-Bretanha à Confederação. Esse apoio incluiu corredores marítimos que entregavam armas e suprimentos ao sul. No Canadá, agentes confederados encontraram suporte significativo de parte da população, utilizando a colônia britânica como base para ações como o saque de St. Albans. Entretanto, essas reivindicações começaram a perder força após o Tratado de Washington, em 1871, quando os EUA reconheceram o Domínio do Canadá. Desde então, os Estados Unidos não promoveram movimentos anexionistas, e nenhuma força política séria buscou persuadir ou coagir os canadenses a se unirem aos EUA. Do lado canadense, também não houve iniciativas significativas nesse sentido.
Apesar da redução das ameaças, o Canadá manteve certa desconfiança em relação aos EUA no início do século 20, levando à elaboração do "Canadian Defence Scheme No. 1" em 1921. O plano visava fortalecer as defesas do país contra possíveis ameaças, especialmente dos EUA, e consolidar sua independência sob o domínio do Império Britânico, com foco em reforçar as costas atlântica e pacífica.
Essa postura defensiva canadense também foi influenciada pela política imperialista dos EUA no início do século 20, exemplificada pela diplomacia do “Big Stick” promovida pelo presidente Theodore Roosevelt. Essa política, alinhada à Doutrina Monroe, buscava impedir interferências europeias no continente americano. Na América Central, resultou no apoio a movimentos separatistas no Panamá, que se tornou independente da Colômbia. Em 1904, o Panamá assinou o Tratado Hay-Bunau-Varilla, cedendo aos Estados Unidos o controle do Canal do Panamá por 10 milhões de dólares. O canal foi administrado pelos EUA até 1999, quando sua gestão foi transferida ao Panamá.
Observado todo esse histórico, vemos o porque da tamanha repercursão das falas de Trump, a proposta de transformar o Canadá em um estado dos EUA, embora pareça surreal, não é apenas uma piada política. Ela surge em meio a uma crise política no Canadá, acentuada pela renúncia inesperada da vice-primeira-ministra Chrystia Freeland. Na visão de Trump, os canadenses estariam dispostos a aceitar a oferta, desde que isso resultasse em uma redução nas tarifas e uma maior proteção militar. Porém, essa ideia, mesmo que impopular entre os canadenses, se insere em uma estratégia mais ampla, com uma retórica agressiva e expansiva.
Em um mesmo sentido, as ameaças ao Panamá sobre o Canal e as tarifas também têm uma única mensagem subjacente: o poder dos Estados Unidos precisa ser reafirmado, e quem não cooperar será, de alguma forma, forçado a ceder. Essas declarações, no entanto, não são simples bravatas. Elas fazem parte de uma estratégia de Trump de criar uma tensão inicial para depois negociar o blefe, em sua forma mais pura. Esse jogo de poder é algo que Trump conhece bem. Em sua forma de negociar, Trump sempre faz declarações que deixam as pessoas surpresas. Ele começa com um pedido maluco para obter vantagem, que então é barganhado até ele obter alguma pequena melhoria que pode ser mostrada ao público como uma vitória de sua administração. Por vezes, o que aparenta ser um pedido inalcançável é simplesmente um meio de pressionar seus adversários a fazer uma concessão. No entanto, além dessas estratégias de negociação, o que se sobressai é a perspectiva de Trump sobre a economia mundial e sua função nela.
A retórica de Trump reflete um modelo econômico protecionista antigo, a política "America First" ( ou "América em Primeiro lugar), com tarifas e limitação de importações. Sua visão se alinha à de Alexander Hamilton, que defendia o protecionismo para garantir a autonomia econômica e promover uma infraestrutura industrial robusta, em contraste com Thomas Jefferson, que preferia uma economia agrícola e menos intervenção governamental. Trump adota medidas como aumento de impostos e restrição de importações para proteger a independência econômica dos EUA. No entanto, é questionável se o protecionismo resolverá os problemas econômicos do país — e a resposta parece ser negativa.
O protecionismo pode soar tentador como uma forma de "fortalecer" a economia interna, mostrando força para seus rivais externos, mas ele traz consigo uma série de consequências prejudiciais. Quando um país se fecha ao comércio internacional, a tendência é que o custo de vida aumente, a inovação diminua e, com o tempo, o país se torne mais estagnado economicamente. A percepção de que quem exporta sai ganhando e quem importa perde valor, é uma visão míope que considera a economia como um jogo de soma zero, onde para ganhar outro deve perder. O comércio livre, por outro lado, não é apenas sobre a troca de mercadorias, mas sobre a interação entre nações, onde a troca de valor beneficia todos os envolvidos. Quando Trump pressiona países como o Canadá e o Panamá a reduzir tarifas ou "se curvar" a seus interesses econômicos, ele está apenas refletindo uma visão atrasada mercantilista sobre o que é a economia, e o que foi o real motivo do sucesso economico americano, o livre mercado. Se trump continuar nessa linha, ao invés de reposicionar os EUA como um país que ainda deve ser temido, ele pode acabar enfraquecendo ainda mais a economia já fragilizada pela gestão Biden.
A ideia de "exportar mais do que importar" é uma visão limitada e não reflete a complexidade da economia. A verdadeira riqueza vem das trocas comerciais, onde tanto o exportador quanto o importador se beneficiam. Não se trata apenas de produzir internamente, mas de aproveitar os ganhos mútuos das relações econômicas com outros países. Trump, ao adotar políticas protecionistas, arrisca isolar os Estados Unidos no cenário global, dificultando seu crescimento e inovação em um mercado dominado pela presença da China. Seu alinhamento com as ideias de Hamilton, que defendia um governo ativo na economia, contrasta com as de Jefferson, que prezava pela liberdade econômica e menor intervenção estatal.
No entanto, a história demonstra que uma intervenção excessiva pode ser tão prejudicial quanto crises severas, como guerras e fomes. O protecionismo extremo cria ineficiências: consumidores pagam mais, e empresas, sem concorrência externa, perdem o incentivo para inovar. As pressões de Trump sobre países como Canadá e Panamá, exigindo a redução de tarifas e barreiras comerciais, refletem uma visão econômica que pode atrasar o progresso republicano e abrir espaço para os democratas reassumirem a liderança. Ao insistir em exportar mais do que importar, Trump ignora o princípio fundamental da economia: as trocas livres e voluntárias são as verdadeiras geradoras de riqueza para todas as partes envolvidas. Com base na visão libertária e nos autores da Escola Austríaca de Economia, podemos afirma que quando duas nações trocam bens e serviços, ambas saem ganhando, porque cada uma delas vê mais valor no que a outra oferece do que no dinheiro que paga por isso.
Em última análise, não, o imperialismo americano não está voltando. Mas o que Trump propõe é realmente um caminho para o passado. Uma tentativa de controlar e centralizar as interações econômicas. Ele quer "forçar" países a se submeterem às suas exigências, esquecendo que, no comércio global, todos saem prejudicados pelo aumento de tarifas e diminuição do comércio. Ao tentar isolar os EUA, Trump pode acabar gerando mais danos não só a economia americana, mas também a capacidade americana a fazer frente quanto nações ditatoriais como Rússia e China. O jogo de poder que ele está tentando jogar pode até ser eficaz em algumas negociações, mas a longo prazo, a verdadeira riqueza de uma nação está em sua capacidade de interagir, produzir e aprender com os outros mercados. O futuro da economia americana, e de sua posição no cenário mundial, depende não de erguer muros, mas de construir pontes.
https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2024/12/7015472-trump-diz-que-transformar-canada-em-estado-dos-eua-e-otima-ideia.html
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/12/trump-diz-que-incorporar-canada-como-um-estado-dos-eua-e-uma-otima-ideia.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha
https://en.wikipedia.org/wiki/Movements_for_the_annexation_of_Canada_to_the_United_States
https://en.wikipedia.org/wiki/Defence_Scheme_No._1
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cje9zzv01peo