Ativista responde criminalmente por dizer que “mulheres trans não são mulheres”

O polêmico caso envolvendo Erika Hilton e uma ativista paraibana revela como estamos caminhando para um país em que o pensamento livre pode ser criminalizado.

Você alguma vez já chamou uma “mulher trans” de homem na internet? Ou disse, mesmo que de forma casual, que “não é mulher de verdade”? Pois bem: cuidado — você pode entrar na mira de Erika Hilton.

No final de 2020, uma militante paraibana publicou, em sua conta no Twitter (hoje X), um vídeo com trecho de uma fala sobre a filósofa Simone de Beauvoir, renomada intelectual francesa conhecida por suas análises sobre gênero e liberdade. Em outra postagem, de maneira direta, escreveu que “mulheres trans não são mulheres”. À época, tratava-se apenas de visões pessoais e críticas ideológicas, mas essas publicações, quando revisitadas em 2025, levaram a uma denúncia formal do Ministério Público Federal (MPF) e transformaram a autora em ré na Justiça Federal. Erika Hilton, deputada federal pelo PSOL-SP e mulher trans, aparece como assistente de acusação, ainda que não tenha sido mencionada diretamente nas postagens que motivaram a denúncia. A pena prevista, se condenada, poderia chegar a cinco anos de prisão, um prazo considerável para o que se trata, em essência, de expressões de opinião.

É importante destacar que a militante não buscava ofender indivíduos específicos, nem incitar violência física; tratava-se de posicionamentos filosóficos e análises de conceitos de gênero, ligados ao debate acadêmico sobre biologia, identidade e pensamento social. Ainda assim, essas postagens foram interpretadas como passíveis de enquadramento criminal, demonstrando o quão sensível e instável se tornou o terreno das opiniões públicas quando submetido a decisões judiciais sem base legislativa clara.

O caso, por si só, já seria polêmico. Mas o que realmente chama atenção é a condução do processo. Relatos de veículos de imprensa e advogados envolvidos apontam que a investigada não teve pleno acesso aos autos, que convocações e depoimentos foram comunicados de maneira deficiente e que a máquina acusatória funcionou sem respeitar garantias mínimas do Estado de Direito. Quando se trata de opinião política, liberdade de expressão ou análise filosófica, tais descuidos não são falhas técnicas: são ferramentas de intimidação política. Um processo que poderia ter sido conduzido com transparência, debate e ampla defesa transformou-se em instrumento de constrangimento e ameaça.

O caso, contudo, teve um desfecho importante: após intensa repercussão midiática, questionamentos jurídicos e acusações de cerceamento de defesa, o processo acabou sendo arquivado. Isabella Cêpa, outra investigada, incluída no inquérito por retuitar as postagens da ativista, também teve seu caso encerrado pelo mesmo motivo, após decisão do Supremo Tribunal Federal. O arquivamento não apaga, entretanto, o precedente inquietante de que opiniões sobre gênero podem ser alvo de investigações criminais e de assédio judicial, mesmo sem lei específica. O episódio permanece como alerta: o simples ato de expressar uma ideia contrária a uma narrativa dominante pode colocar qualquer cidadão sob o risco de processos judiciais prolongados, pressão social e exposição midiática.

(Sugestão de Pausa)

Além do risco individual, o caso evidencia como a judicialização de opiniões filosóficas e científicas interfere no debate público e acadêmico. Professores, pesquisadores e influenciadores passam a ponderar cada palavra, receosos de represálias legais, criando um ambiente de autocensura que inibe questionamentos legítimos e reflexões necessárias sobre identidade, biologia e sociedade. O impacto não é apenas pessoal; atinge toda a esfera pública, limitando a circulação de ideias e o progresso do pensamento crítico.

O núcleo do absurdo reside na própria legislação. No Brasil, até o momento, não existe no Código Penal nenhum artigo que descreva expressamente o “crime de transfobia” ou o “crime de homofobia”. O que há é a interpretação judicial do Supremo Tribunal Federal, que, diante da omissão do Congresso Nacional, decidiu que atos homofóbicos e transfóbicos deveriam ser enquadrados, de maneira analógica, na Lei nº 7.716/1989, que trata de crimes resultantes de preconceito de raça ou cor. Essa solução, embora tenha servido como remédio provisório, é um precedente perigoso. Na prática, isso significa que opiniões, postagens em redes sociais ou comentários podem ser criminalizados como se fossem racismo, com todas as consequências do enquadramento mais severo: inafiançável, imprescritível e sujeito à interpretação volátil de juízes e promotores.

A função de criar tipos penais, ou seja, definir novos crimes, é prerrogativa do Legislativo. Substituir essa função pelo Judiciário compromete a segurança jurídica, transforma decisões individuais em precedentes instáveis e converte tribunais em legisladores improvisados. Além disso, ainda que a proteção a grupos vulneráveis seja relevante, há um risco evidente de desproporcionalidade: um cidadão pode ser processado criminalmente por opiniões controversas, enquanto crimes reais e de maior gravidade frequentemente são negligenciados.

Olhar para fora do Brasil ajuda a compreender a gravidade do ocorrido. Em democracias liberais como o Reino Unido, Canadá e Estados Unidos, debates sobre identidade de gênero frequentemente geram polêmica e repercussão, mas raramente resultam em criminalização de opiniões expressas em fóruns públicos ou redes sociais. Nesses países, conflitos envolvendo liberdade de expressão e proteção de minorias são tratados com medidas proporcionais: discussões acadêmicas, debates em instituições públicas e até sanções civis podem ocorrer, mas o encarceramento por opiniões pessoais ou científicas é praticamente inexistente. O contraste evidencia que a criminalização preventiva do pensamento é uma abordagem extraordinária e, em termos de liberdade, regressiva.

Ao longo da história, o debate sobre sexo, gênero e identidade tem sido objeto de reflexão profunda de filósofos e cientistas. Simone de Beauvoir já alertava, em meados do século XX, que “não se nasce mulher: torna-se mulher”, destacando o papel das construções sociais na definição da identidade feminina. Décadas depois, pensadores como Judith Butler trouxeram novas camadas ao debate, distinguindo sexo biológico de gênero performativo. Essas discussões, embora complexas, sempre fizeram parte do diálogo público e acadêmico, e caracterizam justamente a natureza do pensamento livre: questionar, interpretar e confrontar ideias estabelecidas sem que o autor da reflexão seja criminalizado por sua análise.

No plano internacional, especialistas em direitos humanos defendem que a proteção a minorias deve coexistir com garantias de liberdade de expressão. Medidas punitivas precisam obedecer aos princípios da proporcionalidade e da clareza: restrições a direitos fundamentais só devem ser aplicadas quando estritamente necessárias e sempre com definições precisas do que constitui infração. Sanções penais devem ser último recurso, precedidas de alternativas menos gravosas, como retratações, mediação ou reparações simbólicas e materiais.

(Sugestão de Pausa)

Liberdade de expressão deve ser um princípio inegociável. Opiniões polêmicas ou ofensivas devem ser rebatidas no debate público, com argumentos e contrapontos, não com ameaças de prisão. Criminalizar uma afirmação sobre identidade de gênero cria risco de autocensura, vigilância ideológica e expansão arbitrária do poder judicial sobre o pensamento. Quando a política se mistura com a punição criminal, o resultado não é proteção social, mas controle ideológico.

Outro efeito perverso da criminalização de opiniões é a naturalização da polarização social. Grupos políticos e identitários ganham incentivos para perseguir qualquer discordância, mesmo acadêmica, ampliando a fragmentação da sociedade. Em vez de fomentar diálogo e compreensão, o Estado passa a reforçar rivalidades ideológicas, criando um ambiente em que cidadãos se veem obrigados a escolher lados, muitas vezes em detrimento da razão e do debate crítico.

O episódio deixa claro que estamos diante de uma perigosa lógica de intimidação: enquanto o cidadão teme se manifestar, a própria liberdade de debate e pensamento se dissolve. A militante paraibana, mesmo com seu caso arquivado, já sofreu a pressão, a exposição e o constrangimento de ser investigada criminalmente por uma opinião. Isso é suficiente para criar um efeito censório, que faz com que qualquer pessoa pense duas vezes antes de se manifestar sobre temas sensíveis, ainda que baseados em fatos, biologia ou reflexão.

Avaliar se algo é opinião, crítica filosófica, reflexão científica ou incitação ao ódio é subjetivo por natureza. Juízes e promotores passam a decidir limites do que é aceitável, e qualquer deslize pode se transformar em processo criminal. Trata-se de uma ameaça concreta à liberdade de qualquer cidadão que se manifeste nas redes sociais ou produza conteúdo de análise social, política ou cultural.

É justamente nesse ponto que a perspectiva libertária se faz necessária. Defender a liberdade de expressão significa reconhecer que opiniões controversas — mesmo que incomodem, pareçam até absurdas, desafiem narrativas dominantes — não podem ser transformadas em crimes, ainda mais sem lei clara, debate legislativo e respeito às garantias processuais. O Estado não pode se tornar árbitro da verdade biológica ou moral de cada cidadão, nem punir a discordância de opiniões e ideias.


Ademais, a liberdade de expressão é também a principal ferramenta de resistência cultural. É por meio dela que movimentos sociais, minorias e cidadãos críticos conseguem questionar o poder estabelecido, expor incoerências e propor mudanças sem depender da autorização do Estado. Quando o debate é criminalizado, essa função desaparece, e o resultado é um diálogo público empobrecido, dominado por narrativas oficiais e dogmas ideológicos, incapaz de evoluir ou se corrigir.

(Sugestão de Pausa)

Portanto, a liberdade de expressão, inclusive para a crítica e o debate de ideias hegemônicas, é o que separa uma sociedade livre e viva de um Estado autoritário. As ideias só podem ser contestadas por outras ideias, pelo diálogo e pelo convencimento, nunca pela ameaça de prisão. O único limite possível para a liberdade de expressão seria a realização de ameaças concretas, iminentes, factíveis e dirigidas a alguém específico, que dariam ao ameaçado direito de se defender, sem ter de esperar a violência se efetivar, mas não é o caso. Quando o Estado assume o papel de censor do pensamento, o pluralismo desaparece, e o espaço para contestação racional é substituído por medo e conformismo.

Logo, é urgente que a sociedade compreenda: proteger minorias não pode ser desculpa para criminalizar opiniões divergentes. A defesa da liberdade de expressão é também uma defesa das próprias minorias, pois sem pluralismo, nenhuma voz será realmente protegida, nem mesmo aquelas que o Estado pretende favorecer.

O episódio evidencia uma tensão real e perigosa: o frágil equilíbrio entre proteção de minorias, liberdade de expressão e as consequências da interferência estatal. Defender liberdade de expressão não significa relativizar a dor de quem sofre discriminação. Proteger minorias não pode ser pretexto para atropelar direitos individuais, criminalizar opiniões por meio de atalhos interpretativos ou transformar tribunais em fiscais do pensamento.

O arquivamento do caso, contudo, não deve ser visto como vitória definitiva. Ele é apenas um alerta: qualquer cidadão pode, amanhã, ser alvo de processo por expressar opiniões que desafiem correntes ideológicas dominantes. A liberdade de expressão, portanto, permanece sob constante ameaça, e a vigilância sobre o pensamento se transforma em norma tácita. Defender esse direito é resistir à estatização do pensamento e manter o espaço para a crítica, o debate e a pluralidade intactos.

Se a legislação não for clara, proporcional e transparente, e se o debate público continuar sendo substituído por processos criminais, qualquer opinião que desafie dogmas identitários pode se tornar alvo de coerção judicial. A solução democrática é simples: legislação precisa e discussão pública, sanções graduais e proporcionais, e respeito irrestrito às garantias processuais. A liberdade de expressão, mesmo quando provoca incômodo, é condição fundamental de qualquer sociedade verdadeiramente livre. Sem ela, o pluralismo morre, e o Estado se transforma em censor oficial da verdade.

Referências:

https://revistaoeste.com/politica/policia-federal-indicia-feminista-que-virou-alvo-de-erika-hilton/

https://www.metropoles.com/colunas/andreza-matais/erika-hilton-processo-beauvoir

https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-enquadra-homofobia-e-transfobia-como-crimes-de-racismo-ao-reconhecer-omissao-legislativa/