Um dedicado oficial de justiça seguiu uma sentença judicial ao pé da letra, e foi ao cemitério para intimar um defunto. Me diga se esse é ou não o funcionário do mês do tribunal?
Esse caso seria cômico, se não fosse trágico. Bem, na verdade, ele é apenas cômico mesmo. A bizarra situação aconteceu em Gurupi, no estado do Tocantins. Trata-se de uma ação judicial a respeito de um terrível crime de latrocínio - ou seja, roubo seguido de morte, - cometido em abril do ano passado. Criminosos invadiram a residência da vítima e, além de tirar sua vida de uma forma cruel, roubaram TV, celular, moto e ainda R$ 900. Após analisado o caso, o juiz responsável sentenciou os réus a 21 anos de prisão pelo crime cometido.
Até aí, tudo dentro dos conformes. A partir desse ponto, porém, as coisas começam a ficar curiosas. O juiz emitiu a sua sentença, na qual também determinou que a vítima fosse intimada a respeito da sentença proferida. É exatamente isso que você ouviu! O magistrado, inclusive, foi bastante claro a esse respeito: “Intime-se pessoalmente a vítima, e caso esta seja falecida, intime-se o cônjuge, ascendente, descendente ou irmão”. Na verdade, o juiz solicitou a intimação da vítima duas vezes em seu veredito!
Isso, por óbvio, decorre de um provável descuido na redação da sentença. Parece algo que foi copiado de outro modelo, como se fosse um texto padrão a ser mencionado em todas as decisões do referido juiz. De qualquer forma, isso deixou a situação cômica. Afinal de contas, se houve comprovado latrocínio, a vítima se encontra, agora, no plano espiritual, não podendo ser intimada, a não ser pelos anjos.
Porém, isso não impediu que um oficial de justiça, bastante determinado, cumprisse o seu dever com bravura. Conforme relata a certidão emitida pela Central de Mandados de Gurupi, o dedicado oficial foi até a residência da vítima, na cidade de Dueré, também no estado de Tocantins. Lá chegando, os vizinhos do falecido, com os típicos bom-humor e desprezo pelas autoridades públicas que os brasileiros nutrem, lhe informaram que a vítima tinha mudado de endereço. Ela agora morava no cemitério local.
O oficial de justiça, porém, não se deu por vencido, e tratou logo de procurar a vítima em sua nova residência. Lá chegando, após caminhar entre diversas tumbas, o empenhado funcionário público parou de frente ao túmulo do assassinado, chamando a vítima duas ou três vezes, por seu nome. Não obtendo resposta, fez uma nova tentativa, desta vez chamando-a por seu apelido - “Soviético”. Como a vítima continuou sem manifestar qualquer resposta, o oficial de justiça finalmente concluiu, com um quê de brilhantismo: “o intimando encontra-se mesmo morto”. Assim, com seu dever cumprido, ainda que a intimação não tenha sido entregue, o funcionário público voltou feliz da vida para o seu ofício habitual.
O caso logo repercutiu, dado o seu grau de bizarrice. Na sequência, o Tribunal de Justiça de Tocantins afirmou que “a atitude do oficial de justiça deverá ser apurada por órgão competente”. Segundo o tribunal, “a conduta correta seria de, no máximo, ter ido ao cartório e ter pegado segunda via da certidão de óbito e, no mínimo, intimar o cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, conforme determinado”. Ainda de acordo o órgão, a divulgação da certidão emitida causou grandes desconfortos para aquele juízo.
O Tribunal também tirou o corpo fora, afirmando que não havia nenhum pedido, por parte do juiz, para que o morto fosse intimado. Ou seja, o culpado seria, exclusivamente, o oficial de justiça. Porém, conforme vimos, a sentença dizia claramente que o defunto deveria ser intimidado. Na certa, trata-se de uma culpa compartilhada, entre magistrado desatento e oficial de justiça mané.
Porém, por mais que esse caso seja extremo - e, obviamente, bastante engraçado -, a verdade é que, em maior ou menor grau, todos nós já passamos por esse tipo de problema. Em qualquer repartição pública, federal, estadual ou municipal, lá estará um funcionário público para se ater a regras completamente inúteis e ilógicas, porque esse é o seu trabalho. O resultado disso é um gasto inútil do tempo do contribuinte e do próprio funcionário, com um acréscimo desnecessário de trâmites burocráticos numa máquina estatal que já é mais do que ineficiente.
Não são raros os casos em que, por exemplo, um sujeito precisa de um boleto para quitar uma dívida junto à Prefeitura, mas que nenhum funcionário público é capaz de emitir. Na verdade, todos os funcionários do departamento sabem sim como fazer esse procedimento - que tipicamente consiste em alguns cliques no computador. Porém, a desculpa geralmente usada é a de que o funcionário responsável por essa área está de férias, e só vai voltar daqui a 30 dias. Enquanto isso, ninguém é capaz de resolver o seu problema!
Outra situação bastante comum é quando um sujeito precisa apresentar, para a Prefeitura Municipal, uma série de documentos - para participar de licitações, para dar entrada em algum processo, ou então para receber algum dinheiro pago indevidamente. Dentre esses documentos, costuma ser solicitada a certidão negativa de débitos municipais. Acontece que essa certidão é emitida pela própria prefeitura! Por que diabos o órgão responsável por emitir essa certidão precisa exigir do contribuinte que ele a apresente?
Aliás, os protocolos de prefeituras são mesmo um poço de ineficiência. Até as coisas mais básicas precisam passar por esse trâmite burocrático. Coisas que poderiam ser resolvidas em poucos minutos demandam o preenchimento de um formulário, com cópias e mais cópias de documentos anexos ao pedido. Depois de juntar o calhamaço, o contribuinte ainda precisa esperar que o processo rode por vários setores, até que sua solicitação seja atendida - isso se ninguém perder a papelada, no meio desse caminho.
Em outras palavras: em maior ou menor grau, o estado é mesmo um poço de ineficiência. E o motivo para que as coisas sejam assim é bastante simples: o estado não tem, por objetivo, agradar aquele indivíduo que, com considerável eufemismo, estamos chamando de “contribuinte”. Os funcionários que compõem a máquina estatal são apenas cegos cumpridores de seu papel, ainda que esse papel não faça o menor sentido.
O funcionário do setor de protocolos de uma prefeitura sabe que a maior parte dos casos que passam por ali poderiam ser facilmente resolvidos, sem ser submetidos a trâmites tão burocráticos. Mas não é isso o que ensina o manual! É por isso que, ao invés de resolver o problema do contribuinte, o funcionário público vai empurrá-lo para a máquina burocrática. Afinal de contas, seu compromisso não é com seu suposto cliente, o cidadão; seu compromisso é com a máquina ineficiente que paga seu salário!
O mesmo se pode dizer do oficial de justiça que tentou intimar um cadáver, e que ainda fez um detalhado relatório explicando como sua tentativa não surtiu efeito. É óbvio que esse funcionário público sabe que não faz o menor sentido intimar uma pessoa que já morreu. É evidente que ele sabia que ir ao cemitério chamar pelo morto só resultaria, no máximo, na invocação de alguma alma penada. Mesmo assim, ele foi lá e cumpriu o seu dever; afinal de contas, é assim que ele foi instruído pelo manual estatal. Exercer seu trabalho de forma eficiente não é um requisito; ser obediente ao sistema, por mais burro que este seja, é o que realmente importa.
Se pensarmos direitinho, a maior parte dos cargos públicos, especialmente aqueles relacionados a tarefas cotidianas, são completamente inúteis. Eles não apenas são ocupados por funcionários ineficientes; esses cargos existem para promover a ineficiência estatal! É por isso que existem tantos setores, tantos protocolos, tantas pessoas para dar informações dúbias e carregar papéis de um lado para o outro. A máquina estatal não é apenas ineficiente; ela precisa ser ineficiente, para que todo esse sistema continue operando. E, assim, o emprego de pessoas que não se importam em ser realmente produtivas para a sociedade continuará garantido.
Ainda que, vez ou outra, apareça uma situação tão pitoresca e diferenciada, que acabe ganhando os noticiários, o fato é que o estado é ocupado, majoritariamente, por pessoas que não estão interessadas na eficiência de seu trabalho. Elas querem apenas cumprir os trâmites, para garantir o seu salário. Se for preciso, elas farão coisas completamente absurdas - como pedir para você voltar daqui a 1 mês, para pegar uma guia de pagamento. Ou mesmo, comparecer a um cemitério para intimar um cadáver a respeito de uma decisão judicial. Esse tipo de situação, inclusive, não chega sequer a surpreender quem conhece o real funcionamento do estado. Afinal de contas, além de nos garantir umas boas risadas de vez em quando, a máquina estatal é invariavelmente conhecida por sua tremenda ineficiência.
https://www.metropoles.com/brasil/oficial-justica-intimacao-cemiterio