O que as tentativas de pogrom no Daguestão representam?

As tentativas de perseguição e linchamentos de judeus no Sul da Rússia podem ser o início de um novo movimento separatista.

Na noite do último dia 29 de outubro, grupos de dagestanes (população do Daguestão, uma "república"/província do sul da Rússia) iniciaram um movimento que há muitas décadas não se via. Se trata da tentativa de um 'pogrom' - palavra russa usada para designar um ataque de massas populares contra grupos minoritários de determinadas etnias que se encontravam na cidade.

Não há tanto tempo assim, houve uma tentativa de ataque de imigrantes turcos e azeris (do Azerbaijão) contra Armênios em Lyon, na França. Os vídeos que mostram as multidões são bastante parecidos - apesar da distância do local dos eventos e da diferença entre os destinatários dos "protestos" (armênios e judeus).

Mas há também uma semelhança entre os componentes das turbas em ambos os lugares. Turcos, azeris e dagestanes, assim como os chechenos, compartilham um histórico em comum: todos fizeram parte, em algum momento, do império turco-otomano; além de serem todos considerados tártaros, descendentes do império mongol.

Na verdade, a situação é um pouco mais complicada. As províncias/"repúblicas" do norte do Cáucaso, sobretudo a Chechênia e o Daguestão, desde o fim do Canato da Horda Dourada (um reino do império mongol), sempre estiveram em meio a uma disputa entre três grandes impérios: o russo, o turco-otomano e o persa. Durante o século 19, auge do expansionismo russo - com a Guerra da Crimeia e o declínio do império otomano -, a Chechênia e o Daguestão tentaram conquistar sua independência fundando o Imanato Caucasiano. Esse tipo de governo religioso (muçulmano) durou de 1828 a 1859, até as "repúblicas" do Cáucaso serem novamente derrotadas e incorporadas ao território russo.

Após a crise do império russo no começo do século 20 (que redundaria na guerra civil russa e a tomada do poder pelos bolcheviques), o império otomano avança novamente sobre as províncias do sul da Rússia. Com isso, o Daguestão, a Chechênia, a Ingushetia e a Ossétia do Norte (todas atuais "repúblicas" do sul da Rússia) declaram sua independência, formando a República Montanhosa do Norte do Cáucaso, com o apoio dos turcos. Esse país permaneceria independente somente entre 1917 e 1922, quando foi novamente anexado pelos russos, agora sob a bandeira da União Soviética.

Atualmente, os dagestanes - assim como os chechenos e outros povos do sul da Rússia - ainda são muito próximos, tanto étnica quanto culturalmente, dos persas (o Irã), dos turcos e dos azeris. Todos eles são chamados 'tártaros' pelos russos - apesar de eles mesmos não usarem tal distinção. Apesar de adotarem o russo como idioma oficial - por imposição dos impérios russo e soviético -, suas línguas históricas são da família túrquica. Além de nunca terem aceitado o cristianismo ortodoxo (religião oficial tradicional russa) ou o secularismo marxista soviético. Eles ainda têm, não só como religião mas como ideologia política, o islamismo - o ideal de serem governados por um califa, um sucessor de Maomé que concentre poderes tanto espirituais/religiosos quanto políticos, à semelhança do regime de Khamenei no Irã.

As "repúblicas" do sul da Rússia de maioria islâmica sempre tiveram por tradição se rebelar contra Moscou, em especial em momentos de fraqueza da elite política russa. As tentativas de separação da Chechênia na década de 1990 foram apenas os últimos episódios mais notáveis de tentativa de separação. Enquanto a elite de Moscou não for muçulmana, sempre haverá conflito com as populações muçulmanas do sul, pelo fato de estas não reconhecerem a legitimidade de um regime supostamente secular (ou seja, não teocrático muçulmano).

As tentativas de ataques a judeus desta semana foram consequência disso. Em 2022, os dagestanes tentaram se rebelar contra a convocação militar para a Guerra da Ucrânia - mas essas manifestações foram duramente reprimidas, com mais de 100 detentos. A repressão contra protestos dirigidos ao governo ainda é muito eficiente na Rússia. As "manifestações" - que viraram uma espécie de caça e tentativa de linchamento - contra judeus, por outro lado, não parecem representar uma verdadeira ameaça ao governo russo; mas são. Elas representam um ganho enorme de influência dos vizinhos persas (iranianos) e turcos. Tanto Khamenei quanto Erdogan ganharam espaço com a guerra em Israel, com um discurso capaz de congregar o apoio das populações muçulmanas dos países vizinhos - e fazê-las se voltar contra os próprios governos, ainda que de forma indireta.

A guerra de Israel-Palestina fortalece as elites muçulmanas, em especial em um novo momento de fraqueza russa, com suas centenas de milhares de baixas militares na Ucrânia e uma crise econômica generalizada. Basta pensar que os dagestanes são vizinhos dos azeris - povo que tem enriquecido muito nos últimos anos, em especial graças à independência conquistada em 1991 e com o afastamento dos russos do mercado internacional. O Azerbaijão possui uma enorme reserva de petróleo, à qual os europeus recorreram para substituir o petróleo russo. Enquanto os azeris, seus vizinhos que falam praticamente a mesma língua são independentes e enriquecem, os dagestanes e chechenos são enviados para morrer na guerra - caso contrário morrerão de fome, numa economia cada vez mais decadente.

As tentativas de pogroms contra judeus podem dar início a um novo movimento nacionalista e separatista. Um sinal bastante evidente disso são as publicações dos líderes desses grupos no Telegram, convocando "somente caucasianos". O nacionalismo quase sempre vem acompanhado de um elemento étnico/racial. A perseguição a judeus, ao contrário do que acontecia durante o período medieval, está cada vez menos vinculada ao fenótipo semita e cada vez mais vinculada ao fenótipo europeu típico. O judeu típico, após séculos de peregrinação e miscigenação pela Europa, se distinguiu de seu primo árabe e se aproximou da população branca, loira e de olhos azuis. Sobretudo de países do Leste Europeu como a Polônia e até da Alemanha. O aspecto 'racial'/étnico que restou da luta contra os judeus (fora o aspecto religioso) é aquele que se volta ao judeu-europeu-branco típico, praticamente indistinguível de um eslavo ou um russo étnico. E é por isso que os grupos da esquerda identitária aderem quase que automaticamente à causa Palestina, para "lutar contra" o europeu-judeu supostamente invasor.

Os caucasianos convocados pelos dagestanes para os movimentos não são os caucasianos que muitos erroneamente imaginam - os europeus brancos, de olhos e cabelos claros. São justamente os "tártaros" aparentados dos turcos, dos azeris, dos uzbeques, dos cazaques - todos descendentes do antigo império mongol, mais próximos culturalmente de Istambul que de Moscou. Ao convocar para suas reuniões apenas caucasianos, estão excluindo deliberadamente russos étnicos (dentre os quais supõem haver judeus).

É o provável início de um novo movimento ultranacionalista que pode levar a um levante separatista - que pode levar consigo a Chechênia. E tudo isso pode representar, mais de 100 anos após o fim do Império Russo e mais de 30 anos após o fim do Império Soviético, o início de uma nova fragmentação da federação russa. Fragmentação essa que é algo mais próximo do conceito de autodeterminação dos povos defendido pelo liberal e economista, Ludwig von Mises.

O conceito de autodeterminação defendido por Mises implica no direito de grupos étnicos, nações e pequenas comunidades decidirem sobre seu próprio destino político, cultural e territorial sem interferência externa. O economista austríaco ainda defendia que essa decisão de se separar do país ou não cabia somente ao próprio povo residente de uma determinada região.

Mises e tantos outros como seu principal aluno e herdeiro intelectual Murray Rothbard, sempre defenderam uma descentralização do poder, pois sabem que um governo centralizado é um grande inimigo da liberdade. As violações dos direitos individuais, a criação de um poderoso aparato militar e um estado com forte poder financeiro são resultados de um grande governo centralizador. Quem sai ganhando é a elite no poder, e isso não resta dúvidas se pegarmos exemplos como o governo chinês, o brasileiro e americano, para além da Rússia, é claro. Nossa elite política encastelada em Brasília, por exemplo, tem poder para controlar todos os recursos financeiros gerados pelas milhares cidades brasileiras, tirando a autonomia dos pagadores de impostos.

Cabe lembrar que cada povo tem suas culturas, línguas, tradições, costumes e religiões, então é natural que as pessoas se identifiquem mais com seu grupo, e isso evita conflitos gerados por integração forçada impostas por governos. Sabemos que muitas repúblicas soviéticas, se não todas, foram anexadas com base no uso da força ou na ameaça de invasão. Os países da Europa Oriental como Polônia, Romênia, Hungria, Lituânia, Letônia, a antiga Checoslováquia e Ucrânia foram anexados pelos comunistas e se tornaram verdadeiros infernos de opressão. Nesses países, seus povos foram privados da própria cultura, tradição, literatura, de sua história e da autonomia econômica, além de todo tipo de escolha política.

Além disso, a descentralização também incentiva o livre mercado pois países pequenos ou cidades autônomas são forçados a praticarem o comércio com outros povos para ter acesso a uma maior riqueza e conforto. Podemos ver que isso é uma tendência natural em países como Suíça, Áustria, Bélgica, Irlanda, Dinamarca, Singapura e na ilha de Hong Kong. Apesar de haver países comunistas pequenos como Cuba e a Coreia do Norte, eles são ajudados por seus aliados que compactuam da mesma ideologia marxista, mesmo assim, seus povos passam por carência e problemas de abastecimento.

O economista Hans Hermann Hoppe e o já mencionado Rothbard, que seu foi professor, escreveram sobre a importância que a descentralização tem em permitir que as decisões políticas sejam tomadas no nível local. Isso permite que as pessoas tenham maior controle sobre suas vidas - o que aumenta a autorresponsabilidade individual -, e não dependam de tiranos que vivem longe delas e tentam impor políticas que não fazem sentido para suas vidas. Portanto, todos os libertários devem defender os direitos dos diversos povos, sejam grandes comunidades ou vilas pequenas, de se separarem dos governos centrais - é uma questão de ética, pois nenhum ser humano pode escravizar o outro.

Hoppe chega a defender em sua famosa obra “Democracia, o Deus que falhou” que a transferência do poder e autonomia que se encontra no estado-nação para as cidades, tornaria a cultura dessas cidades mais ricas. Isso porque cada cidade teria incentivos para competir com outras por bons moradores, investidores e empresas, para que possam atrair recursos e melhorar a qualidade de vida de seu povo. Caso a cidade se degradasse em políticas socialistas e progressistas, seus moradores facilmente poderiam votar com os pés ao mudarem para uma cidade melhor.

Enfim, o assunto sobre separatismo e autodeterminação dos povos daria um longo documentário, e se quiser saber mais sobre o assunto, recomendamos o vídeo: “Centralismo, o maior inimigo do libertarianismo”, disponível aqui no canal!

Referências:

Visão Libertária: CENTRALISMO, o maior INIMIGO do libertarianismo:
https://youtu.be/rPvPeCl2dhk
https://www.bbc.com/news/world-europe-20593383
https://www.bbc.co.uk/news/world-europe-63028586
https://www.refworld.org/pdfid/4845551a2.pdf
https://www.swp-berlin.org/publications/products/research_papers/2015RP07_hlb_Isaeva.pdf
https://www.panarmenian.net/eng/news/287172/