A capacidade do ser humano fazer mal a si e aos outros não cansa de nos surpreender. Mas o que leva milhões de pessoas a seguirem ordens arbitrárias e imorais?
Em qualquer história com heróis e vilões, quando este último comete todo o tipo de crueldades com a ajuda de seus fiéis serviçais, me pergunto: por que o capanga faz todas as vontades de seu chefe? Por que abdica da sua própria identidade e, muita vezes, entrega a própria vida pela ambição de seu mestre? Os motivos do malvadão geralmente são claros e diretos. Ele é guiado pela raiva, inveja e ressentimento. Busca o poder ilimitado, a dominação da raça humana, riqueza infinita e a felicidade eterna custe o que custar. Mas e o capanga? Qual a sua motivação? O que o leva a tomar atitudes às vezes mais cruéis do que aquelas que seu chefe seria capaz? Algumas histórias os mostram como seres ignorantes, serviçais acéfalos, ou cidadãos incautos e ludibriados, que fazem tudo por seu senhor. Outras os caracterizam como seres ambiciosos, ávidos pelas migalhas das vitórias do líder supremo. Há também os que são motivados pelo medo, devido a sua família estar presa em algum calabouço escuro e frio.
A dúvida aumenta à medida que crescemos e descobrimos que os vilões existem de verdade. Pior! Milhares senão milhões de pessoas se sujeitam à sua vontade e cometem atrocidades em nome de Deus, do grande líder, do bem maior, ou de qualquer outra bandeira falsa que julguem defender. E sua crueldade supera em muito aquela descrita nas obras de ficção, como os atos terroristas perpetrados pelo Hamas no último 7 de outubro.
Certo, os vilões são persuasivos e carismáticos, fazendo com que os capangas sintam a necessidade de seguir suas ordens para manter seus empregos, segurança e honra. Mas isso explica a motivação de quem jogou tantos judeus à morte durante o Holocausto? Explica, por que os operadores dos tanques chineses não pararam seus blindados na Praça da Paz Celestial? É motivo para soldados pegarem em armas, lutando por políticos corruptos, em guerras sem sentido?
É chocante perceber o que o homem pode fazer por seu líder e é difícil imaginar o que se passa na cabeça destes atores. Muitos deles se esquivam, dizendo estar apenas cumprindo ordens, ou que este era seu dever patriótico, dizendo “a nação corria perigo” ou “é a vontade de Deus”. Qual a régua moral que leva pessoas a torturar e matar de modo a agradar seu comandante?
Em 1961, Stanley Miligram, conduziu uma experiência buscando compreender como pessoas aparentemente saudáveis, puderam cometer crimes tão bárbaros durante o auge do regime nazista. O experimento, retratado no filme O Experimento de Miligram, de 2015, consistia em pedir às pessoas que dessem choques cada vez mais fortes em outros participantes caso estes errassem as perguntas, com voltagens que iniciavam em 15 volts e chegava a incríveis 450 volts. As partes ficavam em salas separadas, sem visão um do outro. Entretanto, o participante com o papel de “carrasco” podia ouvir os gritos de sua “vítima” que, na verdade, era um ator pago para dar gritos convincentes de dor e agonia.
Como resultado, apesar de muitos se recusarem a seguir com o experimento, 65% das pessoas seguiram as regras e continuaram infligindo sofrimento aos outros “voluntários”. A conclusão do experimento foi que a maioria das pessoas tende a obedecer ordens, mesmo que isso vá contra o seu próprio bom senso. Muitos se diziam satisfeitos em poder auxiliar a ciência. Parece algo que ouvimos alguns anos atrás, né? Apesar da controvérsia em relação aos dados obtidos, o teste já foi repetido diversas vezes, em várias partes do mundo, sempre com resultados parecidos.
Em seu “Discurso Sobre a Servidão Voluntária” de 1549, Étienne de La Boétie, humanista e filósofo francês, discorre com indignação sobre essa propensão do ser humano de servir à tirania por mero costume, trocando sua liberdade por conveniências mundanas de valor duvidoso. La Boétie, era amigo de Michel de Montaigne, o qual destacou mais tarde seus méritos nos ensaios e em várias cartas, apontando aquele autor como um importante homem do século em questão.
No livro, o autor trata sobre a tirania de um ponto de vista diferente, evitando falar da crueldade típica dos ditadores para focar na aceitação complacente com que os seres humanos aos milhares, às vezes milhões, se curvam perante estes. Segundo La Boétie, isso só acontece mediante uma espécie de servidão voluntária. Ele afirma serem os próprios homens que se fazem dominar, pois, caso quisessem sua liberdade de volta, precisariam apenas se rebelar para consegui-la.
Em suas palavras: “Mas o que acontece afinal em todos os países, como todos os homens, todos os dias? Quem, só de ouvir contar, sem o ter visto, acreditaria que um único homem tenha logrado esmagar mil cidades, privando-as da liberdade? Se casos tais acontecessem apenas em países remotos, quem não diria que era tudo invenção e impostura? Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermo-nos dele. Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo. Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não se faça nada contra si. São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.”
Um dos motivos elencados por ele para esta “servidão voluntária” é o hábito. Usando o cavalo como exemplo, ele diz que o animal, livre por natureza, ao ser domesticado, no começo morde os freios e rejeita a sela, mas acaba por aceitá-los, brincando com eles e os usa como adornos. É como se com o passar das gerações o ser humano vá se esquecendo de seus valores primordiais e aceite o poder tirânico de bom grado, por não conhecer ou temer de trilhar outros caminhos. Para evitar perseguições, La Boétie foi cuidadoso, usando apenas exemplos de tiranos do passado, como os notórios imperadores romanos. É assustador perceber as semelhanças daqueles tempos com hoje. É quase como se a sociedade não evoluísse nada em séculos de história.
No entanto, há uma diferença crucial. Naquela época os imperadores eram o próprio estado, por assim dizer. Não eram meros representantes. Os tiranos tinham poder absoluto e cruel, no qual a violência física e a escravidão eram a norma. Hoje, a violência estatal, apesar de presente, se disfarça de bem comum, império das leis, respeito às instituições e tantos outros dogmas repetidos com fé fervorosa por seus amantes.
Ainda há figuras centralizadoras, que buscam a todo custo voltar àqueles tempos de poder absoluto, se julgando arautos da justiça ou do bem-estar social. Mas, no fim das contas, tais atores são também servidores voluntários da tirania estatal, que, atualmente, não se apoia mais em uma pessoa, falível, efêmera e mortal. O estado atual se baseia justamente em instituições, criadas com o intuito de “dividir” e propagar o poder dado a elas. Mas estas acabaram se tornando leviatãs imortais que se alimentam do serviço não só de seus súditos, mas daqueles que se julgam seus mestres.
Sim! Mesmo o presidente da república ou o excelentíssimo ministro da suprema corte, aquele com nome e atitude de imperador, são todos reféns do estado. Afinal, para chegar aos mais altos níveis de poder, o ser humano é obrigado a fazer todo o tipo de concessão, abdicar de sua personalidade e bom senso, fazer acordos com inimigos, perdoar traições e destruir a própria reputação. Enfim, literalmente, vender a alma ao leviatã.
Esse monstro nervoso, que se alimenta da vida das pessoas, é insaciável. Ele nunca deixa de cobrar sua cota, principalmente daqueles que usam seu poder. Exatamente como os anéis do poder faziam com seus portadores no livro O Senhor dos Anéis de Tolkien. Felizmente, assim como pregou La Boétie em seu livro, a maior força deste monstro é também sua fraqueza: os seres humanos, que agem em seu nome e, voluntariamente, servem ao estado como seus capangas, oprimindo e sendo oprimidos.
A partir do momento que percebem que sua posição, cargo e ideologia, na verdade são os grilhões que os prendem, podem renunciar a tudo isso. Neste momento, essas instituições começam a ruir. Mesmo aqueles entes mais poderosos, os verdadeiros sociopatas opressores, logo se verão fracos e indefesos, pois não haverá ninguém a lhes servir. Neste sentido, não importa qual papel desempenhamos na sociedade atual, devemos sempre nos guiar por princípios morais e éticos, como o Princípio da Não Agressão, visando respeitar os indivíduos que a compõem ante a coletividade. Assim, temos a obrigação de vigiar os outros e a nós no sentido de renunciar a quaisquer benesses, “direitos” ou poderes que nos levem a abandonar nossos valores e oprimir, mesmo que indiretamente, quem quer que seja.
Muitas vezes a renúncia é a única escolha verdadeiramente libertadora. A única forma de ter uma vida plena e livre de arrependimentos, livre do jugo opressor que advém do poder estatal. Livre para trilhar o próprio caminho sem depender de favores de sociopatas assassinos. Por fim, é sempre bom lembrar do juramento de John Galt, personagem do livro A Revolta de Atlas da escritora Ayn Rand:
“Eu juro pela minha vida e pelo meu amor por ela que nunca irei viver em função de outro homem, nem pedirei a outro homem que viva em função de mim”.
Que este juramento sirva de bússola moral para guiar a humanidade na construção de uma sociedade mais livre, fraterna e verdadeiramente feliz.
https://d3ptueit7w3f7j.cloudfront.net/Livros/Servidao_voluntaria_Boetie.pdf
https://en.wikipedia.org/wiki/Milgram_experiment
Ayn Rand - A Revolta de Atlas
J.R.R Tolkien - O Senhor do Anéis