São tantos os exemplos que a nossa vida é tão semelhante que a de Winston, que fica difícil dizer que estamos em 2024 e não em 1984.
O caso de Liziane Gutierrez, influenciadora brasileira presa no Marrocos por suposto desacato, vai muito além de uma simples manchete sensacionalista. Ele ilustra como o poder estatal, em diversas partes do mundo, pode suprimir liberdades individuais sob justificativas frágeis. Vivemos em uma era que em nome da “ordem”, o estado reprime opiniões, ações e, por vezes, a própria existência de quem ousa questioná-lo. Estaríamos nos aproximando do universo distópico de 1984, de George Orwell? A cada novo caso de repressão estatal, parece que a realidade se torna cada vez mais semelhante com a ficção sombria descrita por Orwell.
Liziane, conhecida por sua participação em reality shows no Brasil, viajava para Marrakech quando se envolveu em uma confusão com autoridades locais. O resultado? Prisão por quase um mês em condições precárias, transferências entre penitenciárias femininas e um processo opaco, no qual nem mesmo o ex-marido ou as autoridades consulares têm acesso claro à sentença. Tudo isso por, supostamente, “desacatar” policiais. As dificuldades enfrentadas por Liziane nos fazem refletir sobre a fragilidade dos direitos dos cidadãos quando confrontados com o aparato repressivo do Estado, principalmente quando esse é operado de maneira arbitrária e sem transparência.
O crime de desacato, utilizado em diversos países como ferramenta de silenciamento, é uma prática que Orwell teria previsto em sua obra: uma arma perfeita para quem detém o monopólio da força. Na referida obra, qualquer forma de resistência ou crítica era considerada um crime contra a ordem, o chamado “crimideia”. Na realidade, o desacato é o “crimideia” contemporâneo: uma acusação vaga, elástica e facilmente usada contra quem não se submete aos agentes da lei. A capacidade que o desacato tem de sufocar o espírito crítico e de impedir o diálogo é um reflexo do controle que o estado deseja exercer sobre seus cidadãos, garantindo que o poder não seja desafiado de maneira alguma.
Por trás do caso, esconde-se um debate maior: até que ponto o governo deve interferir na vida dos indivíduos? Em muitos lugares do mundo, incluindo o Marrocos, o poder estatal é absoluto. Basta um olhar atravessado para um policial, uma palavra mais forte, e será punido sem direito a explicação. É a velha máxima: quem vigia os vigilantes? Aqui, ninguém. Essa ausência da responsabilidade dos atos cria um cenário no qual o abuso de poder se torna a regra, e não a exceção. O cidadão, vulnerável, se encontra completamente à mercê do humor e das vontades daqueles que detêm o monopólio da força.
No Brasil, a história não é tão diferente. Liziane já havia enfrentado episódios similares. Em 2021, discutiu com policiais em São Paulo e foi filmada dizendo “vai pra favela” durante uma operação. Em outra ocasião, foi detida após brigar em um festival de música em Las Vegas. O que essas situações têm em comum? A presença constante do aparato estatal como juiz moral, controlador da ação e da palavra. A lógica do estado de definir e limitar o comportamento aceitável dos cidadãos é uma prática recorrente e preocupante. Quando as autoridades assumem o papel de juízes morais, a linha entre proteger a ordem pública e violar direitos fundamentais se torna perigosamente tênue.
No Marrocos, a prisão de Liziane mostra o que acontece quando o Estado não tem freios. Nem mesmo o governo brasileiro conseguiu intervir de forma eficaz. Ela segue presa, sem previsão oficial de libertação, enquanto seu ex-marido, incapaz de esperar indefinidamente, foi embora. O governo decide, controla e aprisiona. E quem não concorda, paga. Esta situação exemplifica como a autonomia do indivíduo pode ser facilmente subjugada quando o poder estatal atua sem quaisquer limites. A prisão da brasileira não é apenas sobre um desacato, mas sobre a subjugação do indivíduo diante de um sistema inflexível e repressivo.
O que aconteceu com Liziane Gutierrez não é isolado. Em países como o Brasil e a Venezuela, o desacato também é utilizado como instrumento de repressão. A diferença? O Brasil, ao menos, oferece algum espaço para contestação, por meio de uma sociedade civil minimamente ativa. No Marrocos, como em tantas outras nações autoritárias, o jogo é desigual desde o início. O direito de se manifestar contra injustiças é um dos pilares de uma sociedade livre, mas, em muitos lugares, esse direito é constantemente violado.
Enquanto Liziane relata as condições precárias de sua prisão, vale lembrar que a situação não é melhor aqui na América Latina. As superlotações, a corrupção policial e a opacidade dos processos são realidades compartilhadas. No entanto, a detenção de uma influenciadora famosa coloca um holofote sobre um problema que atinge milhões de anônimos todos os dias: a liberdade individual é esmagada pelo aparato estatal, e poucas vezes há quem lute contra isso. A sociedade civil muitas vezes não consegue ou não quer lutar contra tais abusos, seja por medo, seja por descrença no sistema judicial. A história da brasileira serve como um lembrete de que, quando uma pessoa conhecida é reprimida, isso apenas revela a profundidade das injustiças enfrentadas pelos que não têm voz. O Brasil, como diversas nações ocidentais, também compartilha práticas que ferem a liberdade individual e refletem arbitrariedades típicas de regimes autoritários. As estruturas estatais brasileiras, com frequência, operam à margem dos direitos garantidos pela Constituição, abusando de poder e privando cidadãos de suas liberdades fundamentais.
Casos de abuso policial no Brasil são frequentes. Práticas como a prisão sem provas claras, detenções por “desacato” e uso excessivo da força têm sido amplamente denunciadas por organizações de direitos humanos. Em 2018, um caso emblemático envolveu a prisão de um homem em São Paulo por questionar a abordagem de um policial militar. A justificativa? “Desacato à autoridade”. Assim como Liziane no Marrocos, o homem foi levado à delegacia sem chance de defesa quando ocorreu o ato. Esse tipo de ação cria um ambiente no qual o cidadão é reduzido a um status de impotência diante da força policial, sendo a presunção de culpa substituída pela da inocência.
Em 2013, durante as manifestações populares que ficaram conhecidas como “Jornadas de junho”, centenas de manifestantes foram presos sob acusações frágeis. Alguns foram enquadrados como “criminosos” por simplesmente portarem vinagre — que seria usado para aliviar os efeitos do gás lacrimogêneo. A arbitrariedade mostrou que até em democracias, o Estado consegue usar seu aparato repressivo para controlar vozes dissidentes. A repressão de manifestações é um reflexo claro do medo que o poder constituído tem da contestação popular. Quando o direito ao protesto é reprimido, a democracia se fragiliza, revelando um estado mais preocupado em manter o controle do que em ouvir as vozes da população.
Os eventos de 8 de janeiro, quando manifestantes invadiram as sedes dos Três Poderes em Brasília, geraram uma onda de prisões que, em muitos casos, foram marcadas pela obscuridade processual. Relatos apontam que centenas de réus, incluindo idosos e pessoas sem antecedentes criminais, foram detidos sem acesso adequado a advogados ou informações claras sobre os processos. Essas prisões em massa evidenciam um estado que, ao invés de garantir justiça e devido processo, opta por demonstrar força e controle. Advogados de defesa também reclamam da dificuldade de acesso aos inquéritos e aos próprios presos, algo que vai contra os princípios constitucionais de ampla defesa e contraditório.
A história de Liziane Gutierrez deveria nos fazer questionar não apenas os excessos de regimes estrangeiros, mas também os nossos. Os eventos de 8 de janeiro de 2023 e as práticas de repressão policial reforçam que nenhum país está isento de arbitrariedades. A liberdade individual é uma conquista frágil e constantemente ameaçada por aqueles que detêm o poder, e a vigilância é a única maneira de garantir que esses direitos não sejam subtraídos. Como diria Mises, "o preço da liberdade é a eterna vigilância".
Enquanto continuarmos a aceitar que governos decidam o que é aceitável pensar, dizer ou fazer, o espírito de 1984 viverá entre nós. Não é apenas a luta de Liziane ou dos réus de janeiro. É a luta de todos que desejam viver em um mundo onde a liberdade, e não o estado, seja a força dominante. O futuro da liberdade depende de nossa capacidade de resistir e questionar, sempre. Se deixarmos de lutar pela liberdade de expressão e pelo direito ao devido processo, estaremos nos condenando a viver em um mundo onde o medo e a opressão prevalecem. A vigilância deve ser constante, e a resistência deve ser ativa, pois somente assim poderemos garantir um futuro onde a dignidade humana seja verdadeiramente respeitada e valorizada.
https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/11/27/liziane-gutierrez-saiba-quem-e-ex-a-fazenda-presa-ha-1-mes-por-suposto-desacato-a-autoridades-no-marrocos.ghtml
https://www.terra.com.br/diversao/gente/presa-no-marrocos-quem-e-a-socialite-e-ex-fazenda-que-se-meteu-em-barraco-na-africa,b89bdd309c98375e189badc9053c40a9nnehelqu.html
https://www.guilhermefonsecafaro.com.br/post/as-pris%C3%B5es-ilegais-de-8-de-janeiro-de-2023-em-debate
https://pagina12.com.br/brasil/2023/08/02/19419-excesso-ou-justica-as-denuncias-e-polemicas-sobre-as-prisoes-dos-envolvidos-nos-ataques-de-8-de-janeiro
https://www.capitalnews.com.br/opiniao/arquivamento-pela-oab-sp-sobre-a-questao-do-8-de-janeiro-de-2023/412732